"Em decisão proferida no dia 28 de janeiro, o 12a Senado
Cível do conceituado tribunal, nos autos de processo oriundo do Tribunal de
Hannover, reconheceu, em tese, a possibilidade do indivíduo concebido por
reprodução heteróloga, na qual o material genético não provém – total ou
parcialmente – dos pais, mas de terceiro doador anônimo, conhecer a identidade
civil (não apenas genética) de seu genitor.
No caso, duas crianças, nascidas em 1997 e 2002, representadas por seus
pais legais, processaram a clínica de reprodução assistida onde a mãe realizou
a inseminação, questionando a identidade do pai biológico. A clínica recusou-se
a fornecer a informação, alegando o direito ao anonimato do doador do sêmen e
também que seus pais renunciaram expressamente, em declaração registrada em
cartório, à revelação posterior da identidade do doador. Aduziu ainda que a
identificação do pai representaria a falência do sistema de reprodução
heteróloga, pois ninguém doaria sêmen diante do risco de responder pela
filiação biológica no futuro em decorrência da revelação da identidade do
doador.
Em primeiro grau, a ação foi julgada improcedente ao argumento de que
menores só podem exercer esse direito ao conhecimento de sua ancestralidade
após 16 anos, quando têm mais maturidade para avaliar as consequências desse
importante passo. O Tribunal de Hannover aplicou por analogia a regra do § 63 I
da Personenstandsgesetz (PStG), a lei sobre a origem pessoal,
válida para os casos de adoção.
Os menores, então, recorreram ao BGH por meio da Revision e
o tribunal afirmou que o direito ao conhecimento da própria origem consiste em
um dos direitos fundamentais da personalidade, decorrência imediata da
dignidade humana e, portanto, protegido pelos arts. 1º e 2º da Lei Fundamental
(Grundgesetz). E esse direito, por vezes, mostra-se essencial ao pleno
desenvolvimento da personalidade. Aqui, deve-se observar que o BGH não se
refere apenas ao conhecimento das informações genéticas do doador, mas de sua
identidade civil. Por isso, a criança tem, independente da idade, uma pretensão
juridicamente tutelada contra a clínica de reprodução assistida, onde a
inseminação artificial fora realizada, para saber a identidade do doador do
sêmen.
Esse direito não é absoluto, segundo o BGH, afinal existem muitos
interesses em jogo, daí a necessidade de se ponderar no caso concreto todos os
interesses legítimos envolvidos. O maior deles é, na sequência, o direito ao
anonimato do doador de sêmen, que decorre de outro maior, o direito à
autodeterminação – na expressão do tribunal, direito à autodeterminação
informativa (Recht auf informationelle Selbstbestimmung) – também de
status constitucional, que lhe confere o poder de planejar e regular sua vida
particular, o que inclui evidentemente o planejamento familiar.
É evidente que o doador de espermatozoides ou óvulos, ao disponibilizar
seu material genético aos bancos, não deseja assumir como filho a criança
gerada. Ele doa – ou vende, como na Alemanha e nos EUA – seu material genético
para que outros possam ter filhos e, dessa forma, realizar um projeto de vida.
E fazem confiados no anonimato e na certeza de que não serão responsáveis por
essa(s) criança(s). A quebra do anonimato, decorrente do reconhecimento do
direito de conhecer a identidade do pai/mãe biológico, inviabiliza o sistema de
inseminação heteróloga, pois poucos se arriscarão a doar sabendo que no futuro
alguém pode bater em sua porta pedindo o reconhecimento da paternidade e todos
os direitos daí decorrentes, como alimentos e herança.
Isso se torna ainda mais problemático na Alemanha, onde a descoberta da
paternidade biológica permite ao filho requerer a desconstituição da
paternidade do pai afetivo (legal) e a consequente constituição da paternidade
biológica. Por isso, ressalta o BGH que também precisam ser considerados os
impactos dessa informação na vida do doador.
O mesmo se diga em relação aos interesses dos pais legais que, na
maioria das vezes, ainda quando não escondam a origem biológica do filho, não
querem dividi-lo e muito menos perdê-lo para terceiro estranho. Afinal, a
criança é fruto de um projeto parental baseado no afeto, que transcende os
laços da consanguinidade. Disso se percebe o quanto a descoberta da origem
biológica pode gerar sérias complicações para os núcleos familiares envolvidos.
Deve-se, por fim, ainda levar em conta os interesses da clínica de reprodução,
especialmente o dever de sigilo profissional, garantido na Lei Fundamental, que
aqui merece tutela sempre quando exercido para proteção de terceiro (doador ou
pais legais).
O BGH fez questão de ressaltar que o que menos conta no caso são
interesses meramente patrimoniais, seja de que parte for. Por isso, considera
necessária a demonstração da real necessidade (Bedürfnis) ou interesse
da criança em ter acesso à informação almejada, donde se conclui, a
contrario, que essa informação poderá ser negada quando da análise geral do
contexto fático resultar inequivocamente que a pretensão foi movida por fins
meramente financeiros, desde que não merecedores de proteção. Há, portanto, uma
complexa constelação de sensíveis interesses a serem ponderados no caso
concreto, tarefa da qual não se desincumbiu o tribunal a quo,
justificando a devolução dos autos para nova apreciação.
Interessante observar ainda ter o BGH salientado que a renúncia dos pais legais ao conhecimento da identidade do doador do sêmen, feita antes da celebração do contrato com a clínica de reprodução, visando garantir o anonimato do doador, não afeta o direito da criança, posto nula, vez que o ordenamento jurídico não admite contratos em prejuízo de terceiros.
Segundo a
corte, o direito à informação resulta ainda do princípio da boa-fé objetiva (Treu
und Glauben), consagrada no famoso § 242 do BGB, brotando dentro do campo
normativo de proteção, surgido em torno do contrato médico – o que reforça a
impossibilidade das partes afastarem, de comum acordo, os deveres de
consideração, decorrentes da boa-fé objetiva.
Tese controversa
A decisão tem sido alvo de pesadas críticas. A principal, naturalmente, é que isso irá reduzir drasticamente – quiçá por fim – as doações de sêmen e óvulos nas clinicas de reprodução humana, pois mesmo na Alemanha, onde pode ser remunerada, o doador não ganha mais que 100 euros. Naturalmente, isso tem sido lucrativo: muitos estudantes, em busca de um dinheirinho extra, chegam a embolsar 2.600 euros por ano com doações, algo em torno de R$ 8.436. Entretanto, considerando o risco de um futuro reconhecimento de paternidade, a doação vai perder seu atrativo financeiro.
Outra crítica que se faz é que a questão precisa ser regulada em lei específica, que proteja com mais eficiência o doador de sêmen, sob pena de falência do sistema de reprodução artificial heteróloga. Na maioria dos países europeus, as crianças nascidas através de procedimentos desse tipo não têm o direito de impugnar a paternidade do pai legal, o que seria mais benéfico ao sistema, já que os doadores estariam protegidos pelo menos patrimonialmente. No momento, parece haver apenas um consenso: doar sêmen pode sair caro no futuro!
No Brasil, a técnica de reprodução assistida é disciplinada pela Resolução
do Conselho Federal de Medicina e pela Resolução-RDC 23/2011 da ANVISA, que
fixam a gratuidade da doação, o sigilo e anonimato do doador. As clínicas de
reprodução são, da mesma forma que na Alemanha, obrigadas a manter e guardar,
sob absoluto sigilo, em banco de dados permanentes, as informações dos doadores
anônimos. Essas informações só podem ser disponibilizadas excepcionalmente por
razões médicas, resguardada a identidade civil do doador.
A doutrina diverge quanto à possibilidade do filho – e do pai – buscar o
reconhecimento da paternidade biológica. A opinião majoritária aponta a
necessidade de manter o anonimato do doador do material fecundante, sob pena de
inviabilizar a própria utilização da técnica, entendimento seguido pelos
tribunais que já se manifestaram a respeito da problemática, ainda que
tangencialmente.
Esse, de modo geral, também é o entendimento dominante na maioria dos
países europeus. A decisão alemã representa, nesse sentido, um rompimento de
paradigma em prol do fortalecimento da dignidade do ser humano diante das
inovações na Bioética e no chamado Biodireito. ”
Fonte: http://www.conjur.com.br/2015-mar-16/direito-civil-atual-tribunal-alemao-reconhece-identificacao-doador-semen