Uma
menina de 9 anos, com leucemia aguda, precisa de uma transfusão de sangue. Mas
os pais, adeptos da religião Testemunhas de Jeová, não autorizam o procedimento.
Um aposentado de 84 anos, com pneumonia grave e também testemunha de Jeová,
necessita de transfusão, mas, do mesmo modo, a família não dá o aval.
Casos assim são mais comuns do que se pensa no Brasil, e
o de Armando Wolff, o aposentado em questão, é o ponto de partida de um
inquérito no Ministério Público Federal (MPF) no Rio de Janeiro – em uma
investigação que traz à tona o embate entre fé e ciência, o papel do Estado na
proteção do cidadão, o dilema moral de médicos e o conflito entre dois direitos
fundamentais do homem: à vida e à liberdade de escolha.
'Novelo'
Armando
Wolff foi internado em 25 de julho de 2010 na Clínica São Lucas, em Macaé, no
Norte fluminense. Segundo o prontuário médico, tinha dispneia (falta de ar),
arteriosclerose e infecção urinária de repetição, além de anemia crônica. O
quadro evoluiu para pneumonia gravíssima. Anêmico e inconsciente, não reagia
aos medicamentos, e o hospital tentou que seu filho, Aldo, autorizasse a
transfusão de sangue.
Sem autorização do filho, o hospital de Macaé foi à
Justiça, argumentando que tinha o dever de salvar o paciente. A transfusão foi
autorizada pela Justiça e realizada em 18 de agosto de 2010. Armando Wolff
morreu 11 dias depois.
Aldo iniciou, a partir daí, o périplo que deságua no
inquérito do MPF. Na ação, ele alega desrespeito à vontade do paciente e cobra
"reforço no ensino de medidas alternativas à transfusão de sangue".
Wolff não quis dar entrevista. Procurado pela BBC Brasil, seu advogado também
não se manifestou.
Ler o inquérito é desenrolar um novelo em um labirinto
de fatos e nomes e perceber de que modo se relacionam. Anexado ao inquérito
sobre o caso Wolff está o de Luis Augusto do Nascimento, internado em novembro
de 2011 no Instituto Nacional de Traumato-Ortopedia (Into), no Rio, para uma
cirurgia na coluna. Cardiopata e usuário de marca-passo, Nascimento, testemunha
de Jeová, não autorizou a transfusão caso ela fosse necessária.
O
Into lhe deu alta, argumentando que a cirurgia oferecia risco de sangramento e
que necessitava da autorização para eventual transfusão. Um amigo de
Nascimento, Washington Salvioli Salgado, procurou o MPF, que abriu
investigação.
Em 2013, o Into informou ao MPF que ofereceu a
Nascimento a possibilidade de autotransfusão, ou seja, retirar o próprio sangue
do paciente, armazená-lo e usá-lo na cirurgia. Mas Nascimento não foi mais
localizado, e o inquérito foi arquivado.
À BBC Brasil, Salvioli disse que o amigo morreu há cerca
de um ano, sem ter feito nem a transfusão nem a cirurgia.
Em nota, o o Into informou que realiza de 45 a 55
cirurgias de média e alta complexidade por dia e que 10% delas exigem
transfusões de sangue, sendo oferecida a autotransfusão. Mas que é necessário
que o paciente ou seu responsável legal autorize o procedimento.
Pela
vida de Luana
Do
novelo do inquérito do caso Wolff surgem outros casos pelo país. Aos 9 anos,
Luana Manske foi internada em 2014 no Cias, hospital da Unimed em Vitória, para
se tratar de leucemia linfoide aguda.
Seus pais, testemunhas de Jeová, não assinaram a
autorização para a transfusão de sangue, e a Unimed entrou na Justiça.
"Como a menina era menor de idade, a Justiça autorizou sem
dificuldades", lembra o advogado da Unimed Vitória, Marcelo Devens.
O
pai de Luana, o empresário Evanildo Manske, disse que conversou com os médicos
sobre os impedimentos que sua religião impõe. Segundo ele, os médicos
utilizaram no tratamento hemoderivados fracionados do sangue, ou seja, pequenas
quantidades de elementos do sangue.
Este tipo de procedimento é considerado pelas
testemunhas de Jeová como "uma questão de consciência", ou seja, o
fiel decide se quer ou não aceitar. Para salvar a filha, ele aceitou.
"Os médicos me garantiram que não foi transfusão.
Não aceitaria pertencer a uma religião que teria que deixar um filho morrer
para agradar a um ser num universo que a gente nunca viu. Não sou um fanático.
Quem é pai sabe", afirma.
riaram
uma página no Facebook para que amigos possam acompanhar sua recuperação. A
família segue como testemunha de Jeová e Luana foi batizada na religião. No ano
que vem voltará para a escola.
Questões bíblicas
Criada
nos Estados Unidos no fim do século 19, a organização religiosa Testemunhas de
Jeová tem 8 milhões de adeptos em 239 países, segundo seu site oficial, e 800
mil no Brasil. Deus recebe o nome de Jeová, e os adeptos seguem a Bíblia, mas
não acreditam no princípio da Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo
unidos num só Deus Todo Poderoso).
Entre suas práticas religiosas está a proibição de que
os fiéis se submetam a transfusões de sangue, graças à interpretação que fazem
da Bíblia a partir de versículos de vários livros, como Gênesis e Atos dos
Apóstolos. Neste último, recomenda-se que o homem se abstenha "de coisas
sacrificadas a ídolos, de sangue, do que foi estrangulado e de imoralidade
sexual".
O
sangue é entendido como sinônimo de vida e a transfusão, como um pecado que
corrompe sua pureza.
"A gente não fala em punição para quem descumpre.
Mas é a integridade de um princípio que deve ser preservada. A Bíblia não fala
em exceção", afirma o engenheiro Guilherme Rabello, membro da Colih
(Comissão de Ligação com Hospitais), órgão que a Associação Torre de Vigia, que
reúne as testemunhas de Jeová, mantém para acompanhar casos médicos.
Segundo Rabello, estão barradas a transfusão de sangue
total e a de qualquer um de seus quatro principais componentes (glóbulos
vermelhos, glóbulos brancos, plaquetas e plasma), porque eles mantêm a
simbologia bíblica do sangue. Quanto à terapia com hemoderivados fracionados
(receber só a proteína albumina ou o fator Rh, por exemplo), cabe ao fiel
decidir.
É a questão de consciência de que falou o empresário
Evanildo Manske, pai de Luana. Rabello destaca, no entanto, que a literatura
médica mostra procedimentos capazes de reduzir o uso de transfusões.
Resolução
A
resolução 1.201/80 do Conselho Federal de Medicina estabelece que, se houver
recusa de permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo ao Código de
Ética Médica, deve agir da seguinte forma: se não houver iminente perigo de
vida, respeitará a vontade do paciente ou dos responsáveis; se houver iminente
perigo de vida, praticará a transfusão mesmo sem consentimento do paciente ou
de seus responsáveis.
Em agosto de 2014, a 6ª Turma do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) absolveu da acusação de homicídio um casal de testemunhas de
Jeová que proibiu a transfusão de sangue na filha de 13 anos, com grave anemia.
Para os magistrados, os pais não poderiam ser
responsabilizados pela morte e os médicos deveriam ter cumprido seu dever
apesar da resistência da família. Pela decisão, a invocação religiosa deve ser
indiferente aos médicos, que têm o dever de salvar vidas.
O
tema segue longe da unanimidade, o que deixa mais difícil o trabalho da
procuradora da República Ana Padilha Luciano de Oliveira, da Procuradoria
Regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro, onde está hoje o inquérito
do caso de Aldo Wolff. Uma audiência pública foi convocada para ouvir as
partes.
"O direito à vida inclui uma vida digna, conforme
seus princípios. A gente pode achar absurdo abrir mão da possibilidade de
viver, mas, para analisar um caso assim, é preciso se despir de conceitos e
preconceitos", afirma ela.
Chamado a se pronunciar, o Conselho Federal de Medicina
(CFM) informa, em ofício datado de 30 de setembro, que a resolução 1.201
caminha para ser alterada. Foi aprovado em 2014 um parecer do conselheiro
Carlos Vital propondo a revogação da 1.201, mas não há prazo para isso. "O
CFM aguarda as conclusões das diretrizes orientadoras de seguras indicações de
transfusões de sangue."
Tais diretrizes estão sendo elaboradas sob
responsabilidade da sua Câmara Técnica de Hematologia e abrangerão todas as
circunstâncias de transfusões sanguíneas, inclusive aquelas nas quais estarão
envolvidas as questões dogmáticas.
"Após as conclusões, a plenária do CFM fará suas
avaliações e emitirá uma pertinente resolução sobre as seguras indicações das
transfusões de sangue", afirmou Carlos Vital em e-mail enviado pela
assessoria do CFM.
O
inquérito do caso Wolff havia sido arquivado em 2013 pelo procurador Alexandre
Ribeiro Chaves, sob a argumentação de que o direito à vida deve prevalecer
sobre a liberdade religiosa.
Na segunda instância, o procurador regional Rogério
Nascimento desarquivou o caso em fevereiro deste ano citando, entre outros
argumentos, um emitido em abril de 2010 pelo hoje ministro do Supremo Tribunal
Federal Luís Roberto Barroso, a pedido da Procuradoria do Estado do Rio de
Janeiro. Barroso considerou legítima a recusa de transfusão de sangue por parte
das testemunhas de Jeová, entendendo que a decisão se funda no exercício de
liberdade religiosa.
Nascimento alerta ainda para um ponto crucial, o inútil
debate sobre a crença: "Não cabe análise sobre a razoabilidade da crença.
Fosse assim, acabariam protegidas apenas as convicções religiosas mais
ajustadas à conduta social dominante".
Para José Francisco Marques Júnior, médico do Hemocentro
da Unicamp e integrante da Comissão de Hematologia do CFM, é necessário também
que médicos avaliam a necessidade de transfusões. Ele cita estudos mostrando
que 40% das transfusões feitas nos Estados Unidos são desnecessárias – não há
dados do Brasil.
"Costumo recomendar uma conversa com o paciente,
longe de parentes e líderes religiosos, para que ele entenda as consequências
da decisão. O médico existe para salvar vidas. A melhor atitude é a que a
consciência indica", afirma.
Fonte: http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2015/11/uso-nao-biblico-de-sangue-em-transfusoes-opoe-testemunhas-de-jeova-e-medicos.html
Fonte da imagem: http://www.webservos.com.br/gospel/reflexoes/Reflexoes_show.asp?id=16800
Data: 09/11/2015